sábado, 2 de junho de 2012

A FESTA DE CAMÕES E O DISCURSO PRONUNCIADO A 10 DE JUNHO DE 1912 EM ZURIQUE, NUM BANQUETE DA COLÓNIA PORTUGUESA, POR GUERRA JUNQUEIRO, EMBAIXADOR DE PORTUGAL EM BERNA. HÁ 100 ANOS !!!

O nome sagrado de Camões junta-nos hoje aqui, em fraterno convívio,durante algumas horas. Camões é Portugal, e, a festa de Camões, o diasanto da nação. Celebremos o herói religiosamente, vivendo este dia na suaalma, comungando no pão do seu espírito. Adoremo-lo para nos sublimar,para que nos atraia e venha a nós. As línguas de fogo só descem quando sedesejam, e os santos só nos ouvem quando estamos próximos.
Camões é o génio lusitano, a idealidade da raça num herói. Pertence aogrupo dos imortais, dos que viveram no Mundo o breve instante, com olhosde eternidade e de infinito.
A vida resolve-se em dor e amor, e ele amou e sofreu como poucos homens. Amou a justiça, amou a virtude, amou a beleza. Amou a Pátria na humanidade, a humanidade no Universo, e o Universo em Deus. E desse imenso amor fez colheita de luto e colheita de dor. Semeou beijos e nasceram-lhe víboras. Pôs na fronte da Pátria um diadema de estrelas, e recebeu em galardão uma coroa de cardos. A inveja, o rancor, a estupidez, a mentira, a hipocrisia, a ferocidade - bando de lobos e de hienas, vão atrásdele continuamente. Não o deixam, rasgam-no, dilaceram-no. Toda a suaexistência de herói e de mártir é a escalada abrupta de um calvário. O sangue do coração evaporou-se-lhe em génio e verteu-se-lhe em lágrimas. Foi Apoio na cruz, aedo e Messias, bardo e Redentor. Cantou como umépico, lidou como um herói e acabou como um santo.
Nessa imperial, grandiosa e maravilhosa Lisboa do século XVI, ovante defortalezas, catedrais, estaleiros, praças, palácios, cúpulas, bazares; nessa Lisboa rútila e quimérica, de gentes estranhas e desvairadas, nadando e moiro, fulva de pompas, louca de vícios, ébria de orgulho e de prazer; nessa Lisboa babilónica, vasto empório do Mundo, rainha esplêndida dos mares, onde frotas de galeões bolsavam tesoiros fabulosos de países de sonho e demistério; nessa Lisboa, Capital da Luz; nessa Jerusalém das Descobertas, agonizou abandonado e atribulado, mendigo e mártir, sem pão e sem lar, o maior e o mais sublime dos seus filhos, o gigante da raça, o cantor dos Lusíadas. Viveu pela Pátria, cobriu-a de glória, e nela morreu obscuramente,de solidão, de fome e de tristeza.
E ao mesmo tempo que Luís de Camões, divinizando-se na dor, chegava àimortalidade espiritual, a alma da Pátria, degradando-se, envenenada de oiro e de vileza, caía escrava e semimorta. A alma enoitecera-lhe em letargo, mas brilhava e cantava imorredoira na voz ardente dos Lusíadas. É a voz messiânica do épico, é a voz de fogo de Camões quem de novo a desperta e desagrilhoa do cativeiro, e quem durante os séculos pesados de uma noite de horror, a guia na torva escuridão, a fortalece nos desalentos e desmaios, erguendo-a por vezes, indómita e nobre, magnânima e justa, como nos tempos belos da epopeia. A alma sonâmbula do Povo caminha denoite, lastimosa e chorando, atrás da alma do Vidente. Nas datas grandes,nos dias heróicos - 1640, 1807, 1820, 1834 - o culto de Camões inflama-se, Camões revive e está presente. O centenário, há trinta anos, acordou anação, encheu-a de fé, abrasou-a de amor, e a alma do povo e a do Poeta fundiram-se avidamente uma na outra, como dois beijos e dois relâmpagos. E na aleluia sagrada da vitória, no êxtase da imortal manhã de 5 de Outubro, sentia-se, rezando e palpitando, aberta em flor de luz, a almadivina de Camões.
Libertámo-nos. Banimos para sempre os fracos reis que fazem fraca a fortegente, os déspotas e os tiranos, cuja vontade Manda mais que a justiça e que a verdade.
Foram-se os abutres e emigraram os corvos. Partimos algemas, expulsamos verdugos, destruímos cárceres. Não basta. À volta de nós, mortas no chão, as ruínas escuras do passado embargam-nos o trânsito. É necessário erguer, ordenar, edificar. Dêmos corpo concreto e realidade ao que ontem foi sonho e aspiração. Criemos juntos, no trabalho comum, a Pátria Nova. Invocamos Camões para a libertar, modelemo-la então à sua imagem. Façamo-la heróica, augusta e grande como a epopeia. Façamo-la nobrecomo a ode, límpida e ligeira como a canção, ridente e viçosa como aégloga, pura e cristã como a elegia. Sejamos uma nação de alegres marinheiros e de robustos lavradores, vivendo piedosamente vida simples, irmanando as ideias, nivelando as fortunas, cuidando os criminosos como enfermos, amparando os inválidos como crianças, marchando no globo, emêxtase, para a harmonia eterna, para Deus. Criemos uma Pátria ideal,vestida de verdade, armada de direito, fulgente de sonho e de beleza. Queas searas germinem, que os beijos esplendam, e as almas se casem, à luz fecunda dos seus olhos. Uma Pátria materna e carinhosa, que ensine os ignorantes, ajude os que trabalham, ameigue os que sofrem, bendiga os heróis, e deixe entrar no coração, candidamente, a voz alada e luminosa dos passarinhos e dos poetas.
Mas essa Pátria, além de boa e jucunda, eu quero-a estável e armada deforça, além de armada de direito. Quero-a forte para que a respeitem, e siga livre, ovante com denodo, no caminho do bem e do trabalho. A espingarda defenderá a charrua e, a boca negra do canhão, o peito alvo da Justiça. Quando a arma que mata defende a liberdade, os santos choram mas não acusam. Porque então a arma de morte criou amor e gerou vida.
À volta de nós, sofregamente, as cobiças espreitam. Dêmos à Pátria omáximo de resistência, dando-lhe o máximo de unidade. Unamo-nos todos, e ficará incólume. Separam-nos ideias e doutrinas? Embora. Cruzemos as linhas divergentes neste ponto comum - o amor da Pátria. Façamos variedades harmónicas dos antagonismos destruidores. As ideias e crençasmais opostas, vivendo-as no fundo do coração com o mesmo espírito deamor, convertem-se em raios de uma estrela, que, discrepando na circunferência, se casam no centro e se amalgamam. Santifiquemos hoje odia de Camões, que é o dia heróico de Portugal, casando também no amorda Pátria, religiosamente, as nossas vontades, os nossos ideais, as nossas almas. Em nome de Camões, fraternizemos e trabalhemos.
Os pobres da minha terra, que, debaixo de neve ou luz ardente, abrem como arado e com a enxada os sulcos das vinhas e dos trigais, apenas o Sol de Deus chega ao zénite e vai em meio o dia de dor e de canseira, param no trabalho, erguem-se e descobrem-se, e numa atitude imóvel de oração, fazendo religiosamente o sinal da cruz, entoam com voz profunda estas palavras: "Louvado seja sempre nosso Senhor Jesus Cristo!"
Pois bem. Eu desejo que todos os Portugueses, no dia Santo da Pátria, imitando os jornaleiros da minha aldeia, se ergam também em pé, de fronte nua, e digam com igual devoção, do mesmo modo: Louvado seja sempre o nome eterno de Camões! Viva Portugal!
M. Guerra Junqueiro, l'illustre poète portugais, qui a représenté son pays à Berne comme ministre plénipotentiaire, veut bien nous envoyer les notes que voici. Nous les insérons non sans quelque confusion. On les lira avecune émotion profonde et une reconnaissance infinite. (Journal de Genève). http://pt.scribd.com/doc/73171308/Guerra-Junqueiro-Prosas-Dispersas

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