quarta-feira, 9 de junho de 2010

ARISTIDES DE SOUSA MENDES: O maior humanista português do séc. XX

Um verdadeiro herói Lusófono
Herói é, em geral, aquele que se evidencia de armas na mão, perante circunstâncias desvantajosas. Permitam-me que vos fale hoje de um herói diferente, que não matou nem molestou ninguém e que, ‘armado’ apenas de uma simples caneta, salvou, em 1940, mais de 30.000 vidas humanas de uma morte certa nos campos de concentração nazis.

1. Breve biografia: Aristides de Sousa Mendes nasceu em 19.7.1885, em Cabanas do Viriato (hoje uma vila), município de Carregal do Sal e distrito de Viseu e casou em 1909 com sua prima Angelina de Sousa Mendes. Teve 15 filhos. Católico, por formação e por crença, era filho de um Juiz, de quem herdou a faceta humanitária. Licenciou-se em Direito pela Universidade de Coimbra e ingressou na carreira diplomática. Faleceu em 3 de Abril de 1954, na maior miséria, sendo enterrado com um traje franciscano, pois já nada tinha para vestir.

Como Diplomata de carreira, Aristides de Sousa Mendes ocupou diversas delegações consulares portuguesas pelo mundo fora: 1910, Guiana Britânica; 1911, Galiza (Espanha); 1911-1918, Cônsul em Zanzibar, cujo Sultão o condecora pela sua ação política na I Guerra Mundial; 1918-1921, Curitiba (Brasil), onde lhe nasce 1 filha; 1921, S. Francisco (EUA), onde nascem mais 2 filhos;1924-1927, Maranhão e Porto Alegre (Brasil); 1927-1929, Vigo (Espanha); 1929-1938, Antuérpia e Grão Ducado do Luxemburgo; até que, em Setembro de 1938 é nomeado Cônsul-Geral de Portugal em Bordéus (França), estando, pois, aí, quando eclodiu a II Guerra Mundial, em 1939.

2. Para melhor se compreender o gesto heróico de Aristides, convém salientar que, quer antes, quer no ano de 1940, era patente uma ação encapotada pró-nazi do Chefe de Governo Português, António de Oliveira Salazar e da então PVDE (polícia política do ditador), que não só foi treinada como em boa parte equipada pela Gestapo (tristemente famosa polícia política nazi).

A partir de 1939, Salazar acumulou a Presidência do governo com a pasta de Ministro dos Negócios Estrangeiros. O cúmulo da sua desfaçatez de pseudo-neutralidade está patente na sua famigerada “Circular 14”, proibindo os diplomatas de dar vistos a apátridas, refugiados ou sem pátria, determinando que recusassem vistos aos “estrangeiros de nacionalidade indefinida, contestada ou em litígio; aos apátridas, aos judeus, quer tenham sido expulsos do seu país de origem ou do país de onde são cidadãos”, quando vários países já estavam ocupados: Áustria, Checoslováquia, Polónia, Luxemburgo, Holanda, Bélgica e de num ápice os nazis terem invadido a França. Daí magotes de pessoas fugirem pelo chamado corredor de Bordéus para a liberdade.

Aristides, homem de sólidos princípios morais e éticos, resolve desobedecer a essa iníqua ordem, perante a perseguição e o extermínio nazi de que tinha notícia.

De acordo com o seu filho mais velho, Pedro Nuno, que tanto o ajudou e quando este já estava às portas da morte, há 5 anos, revelou que durante 3 dias o pai esteve aparentemente doente, antes de passar mais de 30.000 vistos, pois esteve sim a refletir e terá sido mesmo inspirado por Deus para salvar toda aquela gente, ouvindo uma voz interior que lhe disse: “Levanta-te e vai salvar os que precisam de ti”, após o que, já no Consulado de Portugal, Aristides terá declarado: “A partir de agora, darei vistos a todas as pessoas que o solicitarem, sem distinguir nacionalidades, raças ou religiões”, explicando que preferia estar “Antes com Deus contra os homens do que com os homens contra Deus”.

Convém esclarecer que Aristides, como Cônsul experiente e inteligente, tendo sido colocado em Bordéus em 1939, soube atempadamente o que Hitler estava a fazer e nomeadamente que, em 25/1/1940 os nazis acabaram de construir o campo de concentração de Auschwitz e que para o mesmo foram conduzidos imensos prisioneiros a partir de 20/5/1940, pelo que o seu espírito de homem de bem temeu o pior e logo em Maio de 1940 passou os primeiros vistos. Até que, em Junho, perante a avalanche de refugiados, esteve três dias e três noites sem parar a passar vistos.

Segundo o testemunho do Rabino de Antuérpia, Jacob Kruger, Aristides passou 30.000 vistos em Bordéus (1/3 dos quais a Judeus), mas dali ele foi ainda aos Sub-Consulados de Bayonne e Hendaye, sob sua jurisdição, emitindo também muitos vistos, mas Salazar furioso logo o destituiu e obrigou a regressar a Portugal. Pois mesmo pelo caminho ele passou vistos, pelo que o número de vidas que salvou foi, com certeza, muito superior a 30.000, segundo uns 35.000, segundo outros 38.000.

3. Aristides na verdade desobedeceu a Salazar, mas tal desobediência foi inteiramente justificada, perante uma ordem desumana. Com efeito, como jurista, quero aqui salientar um aspecto de Direito que ainda não vi invocar: era e é legal agir em legítima defesa de terceiros e foi isso, precisamente, que o Cônsul fez.

Na verdade, Aristides mais do que respeitou os requisitos essenciais da legítima defesa – perigo eminente, adequação e proporcionalidade de meios na defesa de terceiros – já que se limitou a usar uma “pacífica” caneta e um carimbo.

Esclareço que, na minha opinião de jurista, a famigerada “Circular 14” é que era ilegal e anticonstitucional, pois apesar da Constituição Portuguesa de 1933, então vigente, ser protofascista, já proibia a não discriminação entre pessoas de raças e credos diferentes e foi isso que Aristides respeitou. Salazar é que não cumpriu o que tal Constituição estabelecia e, num comportamento ignóbil, mesquinho e vingativo, moveu-lhe um processo disciplinar e em 23 de Junho de 1940 aposentou-o compulsivamente da função pública (demitiu-o) e condenou-o autenticamente a uma morte lenta, ao proibi-lo de exercer qualquer profissão, mormente advocacia.

Destaco que Aristides, como jurista, bem se tentou defender, mas tudo foi debalde, pois no processo disciplinar Salazar usou o seu poder discricionário e decidiu demiti-lo e condená-lo a uma morte em vida, como já referi, e não obteve justiça no então Tribunal Administrativo – único a que na altura podia recorrer, pois inexistia então o Tribunal Constitucional nem era possível a um funcionário recorrer aos Tribunais comuns – sendo que os Juízes daquele eram escolhidos a “dedo” pelo poder vigente. Tal como nada conseguiu do seu apelo à então Assembleia Nacional, como bem se compreende, pois a mesma era na totalidade composta por membros do partido único, designado “União Nacional”, como aliás era timbre das ditaduras de tipo fascista, como era a de Salazar.

Mas a história não acaba aqui, pois continuou com dois dos filhos de Aristides, Carlos Francisco Fernando e Sebastião Miguel Duarte, nascidos nos EUA em 1922/23, quando ele foi Cônsul em S. Francisco, que deram sequência ao corajoso ato de seu pai, alistando-se, em 1943, no exército americano (tinham dupla nacionalidade). Terão sido os dois únicos portugueses que participarem no dia “D” – 6.6.1944 – data do desembarque dos Aliados na Normandia, combatendo os nazis até Berlim.

4. Apesar do empenho de vários dos seus filhos, a reabilitação de Aristides demorou e só se efectivou devido ao empenho de algumas figuras internacionais para que o Mundo tivesse conhecimento do heroísmo de Aristides. Israel é o primeiro País. Em 1961, o Yad Vashem planta em sua memória uma árvore na Alameda dos Justos, em Jerusalém, e posteriormente são plantadas mais árvores, inclusive uma floresta. Em 1967, aquela autoridade estatal israelita para a recordação dos mártires e heróis do Holocausto, homenageia Aristides, desta vez, com a mais alta distinção: uma medalha comemorativa com a inscrição do Talmude, em cujo reverso se pode ler: "Quem salva uma vida humana, é como se salvasse a humanidade inteira". Foi o primeiro não israelita a receber a honrosa distinção de “JUSTO ENTRE AS NAÇÕES”.

Seguem-se a França, sendo descerrada uma estátua sua em Bordéus, a Bélgica, a Holanda, o Reino Unido e os Estados Unidos, sendo este país que alerta Portugal de se ter ‘esquecido’ de Aristides. Daí que Portugal só viria a reconhecer o seu Herói em 1987, com a sua condecoração, a título póstumo, pelo então Presidente da República, Mário Soares, com a Ordem da Liberdade.

Em 1988, a Assembleia da República portuguesa, por unanimidade, reintegra Aristides na Carreira Diplomática, promovendo-o, a título póstumo, a Ministro Plenipotenciário com direito a uma indemnização à família, o que só permitiu readquirir a sua casa em ruínas e constituir uma Fundação com o seu nome. Em 1995 é-lhe atribuída a Grã Cruz da Ordem de Cristo.

Depois disso, seguem-se várias homenagens pelo Mundo fora, que seria fastidioso referir, apenas ressalto que há 7 anos a Comunidade israelita de S.Paulo lhe descerrou um busto na sua sede, que o seu nome foi atribuído a varias artérias em Portugal e à Escola Secundária de sua terra (Cabanas) e que a Grande Loja Legal e Regular de Portugal criou uma Loja com o seu nome e em 2008 atribuíu-lhe a mais alta condecoração Maçónica (Grande Colar do Gen. Gomes Freire de Andrade), tendo nesse ano sido inaugurada, em Santarém, a única estátua dele em Portugal.

Recentemente, foi lançado um museu virtual sobre a vida do insigne Cônsul, promovido pela Assembleia da República. O site é bom e podem consultá-lo em http://mvasm.sapo.pt, pois contém documentos e imagens da época. Mas melhor seria que o Estado Português ajudasse a edificar um Museu real, na sua Casa do Passal, em Cabanas do Viriato, ora ainda em ruínas, onde podia e devia ser instalado o Museu da Paz e dos Direitos Humanos, face à grandiosidade do seu amor ao próximo, incondicional e universal e bom seria que a sua vida, eivada de virtudes e princípios, fosse dada a conhecer nos livros de História, como um exemplo para todos, por forma a que se multiplicassem os JUSTOS.

5. A par de Aristides e por terem agido de forma idêntica, entendo justo e necessário lembrar e homenagear aqui também dois ilustres brasileiros, que igualmente merecem a designação de heróis lusófonos. Desobedecendo a ordens do Presidente Getúlio Vargas, o então Embaixador do Brasil em França, Luiz de Souza Dantas, concedeu centenas de vistos a judeus até 1942, e D. Aracy de Carvalho Guimarães Rosa (ainda viva, em São Paulo), encarregada de vistos no Consulado do Brasil em Hamburgo, logrou igualmente vistos para salvar dezenas de judeus. Ambos ficaram para a História da Humanidade, entre outros, como “Justos entre as Nações” e estão lembrados, tal como Aristides, no Museu do Holocausto, em Jerusalém.

Aliás, no campo dos Direitos Humanos, cumpre-me destacar mais dois ilustres brasileiros: Austregésilo de Athayde, homem de letras e de lutas, co-autor da Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela ONU em 23.12.1948, e Sérgio Vieira de Mello, diplomata e Alto-Comissário da ONU, que coordenou a independência de Timor-Leste e veio a morrer vítima de uma cobarde bomba no Iraque.
Dia da Consciência: 17 de Junho – Foi há 70 anos!

Entretanto, no próximo dia 17 de Junho, por iniciativa dos Amigos de Aristides, comemora-se o Dia da Consciência, em homenagem ao diplomata português e a todos os que, durante a II Guerra Mundial, salvaram vidas humanas das garras do Holocausto, para recordar, celebrar e refletir sobre a sua coragem de há 70 anos. Desta vez a Igreja Católica lembrou-se que ele era católico e, assim, Aristides e os demais vão ser recordados em Missas por todo o Mundo, destacando as que se vão celebrar no Vaticano, Sé de Lisboa e Braga (Portugal), Bordéus e Paris (França), New York, Newark, New Jersey e S. Francisco (EUA), Montreal (Canadá) e S. Paulo, S. Salvador e Fortaleza (Brasil), além de muitas Sinagogas se associarem a esta comemoração, à qual todos somos também convidados a participar. Também em 17.6.2010 se prevê que seja estreado um filme em França sobre Aristides.

6. Termino salientando a imensa solidão que deverá ter sentido Aristides, ostracizado devido à proteção que deu aos que fugiam da barbárie nazi, tanto mais que ele não era uma personalidade ideológica, "propriedade" da esquerda ou da direita, pois até seria politicamente um monárquico, católico e conservador, mas, isso sim, um homem que sentiu, a certa altura, o dever de se revoltar face à iniquidade e à tragédia, colocando a dignidade e a consciência à frente do dever formal de obediência a uma ordem injusta.

Por isso, a memória e o exemplo de Aristides têm de se manter vivos, para as novas gerações, como um precursor e um dos principais defensores dos Direitos Humanos e, assim, não será demais considerá-lo um herói Lusófono.

Concluindo, diria ainda que, ao meu país, falta, entre outros atos, assumir uma atitude patriótica, cabendo aos poderes constituídos a iniciativa de trasladar os restos mortais do Embaixador Aristides de Sousa Mendes para o Panteão Nacional, em Lisboa, onde repousam os Grandes Heróis Portugueses, fazendo jus ao poeta épico Luís de Camões, que os cantou n’ "Os Lusíadas" como "... aqueles, que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando...”.  

Jorge da Paz Rodrigues (Discurso proferido em 8.6.2010 na Embaixada de Portugal em Brasília)

1 comentário: