domingo, 9 de maio de 2010

Inteligência vertical e horizontal

Diz-se muitas vezes: «Fulano é inteligente, sicrano é estúpido». Mas, deixando para já de lado a estupidez, o que significa exactamente a palavra ‘inteligência’? Antes de mais, gostaria de fazer uma distinção entre ‘esperteza’ e ‘inteligência’.
Para muita gente são sinónimos. Uma pessoa esperta é inteligente e vice-versa. Ora não é assim. As duas palavras têm significados bem distintos. Mais: há muita gente esperta que não é inteligente, como há pessoas inteligentes que não são espertas.
A meu ver, a inteligência supõe capacidade para pensar e produzir ideias. Uma pessoa inteligente é aquela que não se limita a reproduzir mecanicamente as ideias de outros, antes é capaz de criar, de elaborar raciocínios – e, portanto, de ter um pensamento próprio.
A esperteza, pelo contrário, não é criativa. Uma pessoa esperta não tem de criar nada, de ter ideias próprias, de ter um pensamento original. A sua característica é apanhar facilmente as ideias dos outros e saber usá-las.
Por esta razão, os indivíduos espertos são normalmente bons alunos: eles apreendem as matérias com rapidez e reproduzem-nas com facilidade. Mas muitas vezes não são, depois, grandes profissionais – sobretudo em funções que exigem uma reflexão própria.
Inversamente, os indivíduos inteligentes podem não ser grandes alunos – até por terem certa aversão a reproduzir o que vem nos manuais, a repetir as ideias de outros – mas podem chegar longe no plano profissional.
Temos aqui, portanto, uma primeira e decisiva clarificação: a diferença entre inteligência e esperteza.
Todos nós, se pensarmos um pouco, concluímos que conhecemos pessoas espertas e pessoas inteligentes. Às vezes, ainda não acabámos de concluir um raciocínio e já os nossos interlocutores perceberam tudo – e estão a comentar o que queremos dizer.
Algumas destas pessoas são autênticas esponjas – tal a sua capacidade para absorver reflexões alheias. Mas depois não são capazes de dizer nada de novo, de surpreendente, de original. De produzir uma ideia própria. Limitam-se a reproduzir o que leram ou ouviram.
Por outro lado, conhecemos pessoas que nos estão sempre a surpreender com afirmações inesperadas, com reflexões contra a corrente, ao arrepio das ideias feitas. Quando todos estão a repetir uma coisa, eles dizem o contrário.
Estas pessoas são decisivas em todos os grupos – porque levam os outros a interrogar-se, a ter dúvidas, a perceber que aquilo que ‘toda a gente diz’ talvez não seja tão evidentemente verdade.
Estabelecida a diferença entre inteligência e esperteza, há que fazer outras distinções. Para começar, não há só um tipo de inteligência – há vários. Há, por exemplo, ‘inteligência prática’ e ‘inteligência teórica’.
O meu filho mais velho, quando andava a estudar Filosofia, dizia que a prática não interessava nada – que a única coisa que interessava era o pensamento. A prática só conspurcava o pensamento, contaminava-o. As pessoas deviam refugiar-se na especulação pura porque era a única que não estava contaminada pelos malefícios da prática. E não havia modo de o demover dessa ideia. A prática, para ele, era uma coisa horrível, abominável.
Outras pessoas dizem exactamente o contrário: que o pensamento em estado puro não vale nada, e que a prova da sua validade está no confronto com a prática, na aplicação à realidade. Dizia Salazar no fim da vida, falando de Marcello Caetano, que as ideias (neste caso, em política) não são boas ‘em si’: as ideias só existem quando são passíveis de levar à prática – e de produzir resultados.
Conheço pessoas com uma grande capacidade especulativa, que fazem o nosso pensamento voar com elas, mas com uma enorme dificuldade de adaptação à realidade. E também conheço o contrário: pessoas com uma fantástica inteligência prática, que inventam processos novos de fazer isto ou aquilo, que criam produtos com sucesso imediato, mas que não têm a mínima capacidade especulativa.
Quando entram na especulação, na teoria, no pensamento puro, parecem atrasados mentais.
Continuando a falar de inteligência, há outra distinção que nunca vi tratada mas que um destes dias me ocorreu com meridiana evidência.
Parece-me hoje claro que há uma ‘inteligência vertical’ e uma ‘inteligência horizontal’ (e quando falo de ‘horizontal’, não me refiro ao divã do psiquiatra nem pretendo fazer uma alusão irónica ao modo como algumas pessoas sobem na carreira...).
A inteligência horizontal é a capacidade de abarcar uma grande quantidade de assuntos e tratá-los com algum desenvolvimento e interesse. A pessoa que conheço que possui em mais alto grau este tipo de inteligência é Marcelo Rebelo de Sousa. Ele trata de um sem número de temas – desde a política à economia, desde a música à religião, desde a literatura ao futebol, desde as questões internacionais à União Europeia, desde os temas jurídicos aos temas jornalísticos – com o maior à vontade e desenvoltura, e sempre com interesse.
De semana para semana renova os temas sobre os quais se debruça ou reinventa ângulos de abordagem.
Claro que as pessoas que possuem este tipo de inteligência não podem esmiuçar demasiado cada tema. Trata--se de uma visão panorâmica – que é o oposto da observação microscópica.
Nos antípodas desta está a inteligência vertical. A pessoa que conheci com uma inteligência vertical mais vincada foi o meu pai, António José Saraiva. Ele era incapaz de tratar ou dominar vários assuntos ao mesmo tempo – mas quando tratava um procurava escalpelizá-lo, ir à raiz. E em geral conseguia ter sobre ele opiniões novas, conclusões originais, pontos de vista nunca descobertos.
Ele gostava de falar de Literatura, História e Política – e para lá disso era um zero quase absoluto. Não percebia nada de futebol, nem de matemática, nem de assuntos comunitários, nem de televisão, nem de música…
Posso dizer, neste aspecto, que o meu pai e Marcelo foram duas das pessoas mais inteligentes que conheci – mas ao mesmo tempo mais diferentes. As suas inteligências eram radicalmente opostas, uma saltitando com graça e talento de assunto para assunto, outra escalpelizando um tema, não o deixando fugir, procurando entendê-lo até ao fim.
Creio que neste aspecto saio mais ao meu pai – embora com uma componente prática que o meu pai não tinha de todo, e que herdei da minha mãe.
E isso levou-me a dizer convictamente ‘não’ a Vicente Jorge Silva quando, há 30 anos, me convidou para substituir Marcelo Rebelo de Sousa no Expresso quando este saiu para o Governo. Ou, em tempos mais recentes, quando José Rodrigues dos Santos e Judite de Sousa me convidaram – num simpático almoço no Pabe – para comentar semanalmente na RTP a política portuguesa.
Sempre me senti incapaz de me desdobrar por vários assuntos, de tocar vários instrumentos. Gosto de agarrar num tema e descascá-lo, como uma cebola. Foi isso que sempre fiz na coluna Política à Portuguesa e que continuo a fazer aqui no SOL na Política a Sério.
E é também isso, embora noutro registo, que faço nas crónicas deste local: pego num tema e vou falando dele ao sabor da imaginação, da memória, e de reflexões feitas ao longo do tempo. Como hoje.
E o leitor já pensou nisso? Tem um pensamento mais ‘vertical’ ou mais ‘horizontal’?  JAS

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